sábado, 1 de outubro de 2011

CRÔNICA DO DR. GERIVALDO NEIVA:O JARDIM DO FÓRUM, UM PROJETO




 O JARDIM DO FÓRUM, UM PROJETO
Gerivaldo Alves Neiva *

Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele (o sábio) colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.

                                                                                       Epicuro, Carta sobre a felicidade a Meneceu.

O pátio do fórum de Coité está precisando de uma reforma. Estive conversando com o administrador sobre este assunto a semana passada e decidimos aproveitar melhor o espaço. Quem sabe um pequeno palco para apresentações, uma parede branca para projeção e retomar o projeto Cine Fórum?

Na noite deste dia, enquanto o sono não chegava, apanhei aleatoriamente algum livro na estante e me caiu nas mãos uma pequena brochura sobre história da filosofia, dessas historiografias tradicionais mesmo. Abri qualquer página e li um pouco sobre o Jardim de Epicuro, mas o sono chegou logo...

Esta mistura de reforma do pátio do fórum com o Jardim de Epicuro foi retomada em sonho. Pois bem, sonhei que o pátio do fórum tinha se transformado em um espaço chamado O Jardim do Fórum e acontecia de tudo no local: poesia, música, dança, cinema, teatro, exposições, filosofia, conciliações, mediações, debates, reuniões e festas.

Tal qual o Jardim de Epicuro, o Jardim do Fórum também não era um local só de diversão, mas um local de discussões acaloradas sobre o Direito e a Justiça, porém alegres. O fundamento de todas as discussões, como também acontecia no Jardim de Epicuro, tinha sempre como base a vida cotidiana e a busca da felicidade. Nada de discussões estéreis, meramente teóricas e desvinculadas da realidade das pessoas. Sobretudo, eram discussões democráticas, alegres e acessíveis a todos.

Qualquer pessoa também podia passear no Jardim do Fórum. Não havia discriminação de qualquer natureza e, exatamente por ser assim, era o lugar preferido de todas as espécies de excluídos. Portanto, prostitutas, homossexuais e outros marginalizados se sentiam absolutamente confortáveis no Jardim.

No sonho que sonhei, estranhamente, estava acontecendo uma festa no Jardim do Fórum e não me foi informado, a princípio, o motivo daquela festa. As pessoas estavam felizes, dançavam, conversam e bebiam sem moderação. Lei seca e bafômetro? Nem pensar...

Têmis, a Deusa, provocante e linda, transitava pelo Jardim como se não pisasse o chão. Não tinha os olhos vendados, não trazia balança, nem espada e passeava alegremente entre as pessoas. Era de uma beleza estonteante. Vestia um vestido branco, fino, quase transparente, um decote bem generoso, colo branco quase rosa, cabelos castanhos encaracolados e ao vento, sorriso provocante e cativante... uma Deusa de verdade, em carne e osso.

Sentado e parecendo distante, em Atenas, na ilha de Lesbos ou em Lâmpsaco, Epicuro, feliz da vida, observava atentamente e não desgrudava os olhos da bela Têmis. Ao seu lado, tomando nota de tudo, Diógenes Laércio e outros epicuristas e hedonistas de todas as épocas, inclusive o contemporâneo Michel Onfray. De passagem, ouvi Epicuro filosofando e Diógenes anotando: “que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz.” Na verdade, Epicuro estava ditando a Diógenes uma carta a ser enviada a Meneceu. Em sonho, tudo é possível.

Em outra mesa, tomando um cafezinho, Orlando Gomes, Clóvis Bevilácqua, Pontes de Miranda, Teixeira de Freitas, Calmon de Passos e Cosme de Farias – um famoso rábula baiano – em gargalhadas escandalosas, debatiam sobre a autonomia privada, direitos de personalidade, prazer e obesidade... Tudo a ver com Epicurismo e Hedonismo.

Um galera mais jovem, um pouco mais à esquerda, passando uma cuia de chimarrão, João Batista Herkenhoff, Amilton Bueno, Délio Rosa, Rui Portanova e Rui Rosado de Aguiar trocavam figurinhas sobre as experiências da magistratura... Ouvindo atentamente, pude reconhecer ainda Luiz Edson Fachin, Lotufo, Leoni, Tartuce, Simão, Lucas, Penteado, Mazzei, Catalan, Bernardes, Roxana, Fredie, Ricardo Maurício, Cristiano, Pablo Stolze, Andréa, Mônica, Eroulths, Edvaldo Brito e outros tantos que não reconheci no sonho.

Em uma mesa mais ao centro, cada um com sua Constituição na mão – e uma taça de vinho na outra, Paulo Bonavides, José Afonso, Luis Roberto Barroso, Ingo Sarlet e Willis Santiago divagavam sobre a teoria da constituição. Ao lado deles, havia um jovem, que ouvi sendo chamado de Dirley, tomando notas sem parar.

Em outra parte do jardim, Drumond e Bandeira, com a galera-maluco-beleza da cidade, declamavam poesias. Não havia muita platéia ouvindo, mas parece que para eles o mais importante era declamar. A platéia era apenas um detalhe. A maior satisfação era simplesmente declamar. Os malucos da cidade estavam mais malucos do que de costume.
Na mesa mais alegre da festa, Luis Alberto Warat, Leonoel Severo Rocha e Alexandre Morais da Rosa, rodeados de prostitutas, malandros e outros heróis, promoviam um animado café filosófico... Também nesta mesa, um pouco mais comportado, Lenio Streck tomava algumas notas, mas não concordava com as loucuras propostas por Warat.

A reclamação de alguns em relação à fumaça tinha razão de ser. Pois bem, Marx, Engels, Proudhon, Freud, Lenin, Trotsky e Gramsci, este último bem acomodado em uma cadeira por conta do problema na coluna, fumavam fedorentos charutos e discutiam, em fenomenal algazarra, em várias línguas, sobre o Estado, sociedade civil, ideologia, revolução, propriedade, psicanálise, cultura e intelectuais... Metido que só ele, Marx se gabava a todo instante de ter escrito sua tese de doutorado sobre a diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, desfazendo equívocos sobre o pensamento do filósofo do Jardim.

Havia também uma mesa com vários convidados estrangeiros: Habermas, Dworkin, Rawls, Cappelletti, Canotilho, Alexy, Bobbio, Boaventura, Zaffaroni, Miaille, Duguit, Perelman, Ihering, Luhmann, Foucault, Ferrajoli, Grossi, Barcellona, Rodotá, Pachukanis, Stucka, Hesse, Lassalle, Maffesoli, Baudrillard, Verdú, Deleuze, Morin, Zizek, Perlingieri, Mészáros e outros que não reconheci.

De forma bem provinciana, as mulheres tricotavam em uma mesa em separado e pude reconhecer Judith Martins-Costa, Teresa Negreiros, Maria Celina, Gizelda Hironaka, Ana Paula, Marilena Cahuí e Hannah Arendt conversando animadamente sobre o vestido de Têmis.

Para a posteridade, gravando tudo, Glauber Rocha prometia um filme fantástico sobre o evento histórico; Portinari registrava tudo em uma tela e Luiz Gonzaga dividia outro pedaço do Jardim com a banda de pífanos de Caruaru. 
 
Dentre todos, havia apenas um senhor de paletó e gravata, sisudo, tomando chá, alheio a tudo que acontecia, concentrado e pensativo... Era Kelsen fazendo anotações para sua “Teoria pura do Direito.”

Recobrado do susto, depois de perguntar o que se passava, fui informado que estava acontecendo, para desespero de aristotélicos e platônicos, a festa do casamento de Têmis com Epicuro, apesar dos protestos visivelmente ciumentos de Warat e do Marquês de Sade, que tinha chegado de última hora.

A cerimônia foi presidida por Dionísio, o Baco em pessoa, em raro momento de sobriedade, rodeado de bacantes desvairadas e visivelmente embriagadas. Depois da cerimônia, uma festança regada a muito vinho e cerveja... Agora fiquei sem saber se aqui é começo ou o final do sonho...

O certo é que acordei atrasado para mais um dia de trabalho, para a rotina diária de um magistrado. Chegando ao fórum, ao cruzar o pátio, fechei um pouco os olhos para relembrar o sonho, mas não podia me atrasar mais: partes e advogados me esperavam para uma audiência, a mesa estava repleta de autos para despachar e sentenciar, mil relatórios para o CNJ e metas a cumprir. Somente para isto serve um Juiz que não sonha...

Na verdade, como escreveu Epicuro a Meneceu, “nunca devemos nos esquecer que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.”

Da janela da sala de audiência, na certeza de que o futuro nasce no presente, continuei a sonhar olhando para o Jardim do Fórum!


Salvador, 04 de julho de 2009


* Juiz de Direito em Conceição do Coité – Ba.
PS. Têmis e Epicuro pedem desculpas aos amig@s que não foram lembrados, incluindo Bakunin, Stédile, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Manoel de Barros, Cora Coralina, Torquato, Cazuza, Pagu, Oswald, Macunaíma, Maiakovsky, João Cabral, Patativa, Castro Alves, Olga, Dom Hélder, Francisco, Clara, Casaldáliga, Frei Caneca, Cervantes, Zumbi, Nabuco, Dostoevsky, Baudelaire, Antígona, Faoro, Chatô, Dallari, Paulo Freire, Roberto Lyra, Florestan, Apolônio, Nietzsche, Eros Grau, Carlos Brito, Joaquim Barbosa, Martí, Bolívar, Túpac Amaru, Che Guevara...

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