terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Lembranças de uma surra e sua relação com o Direito

 


                                                                              Lovers in moonlight (Marc Chagall)


Lembranças de uma surra e sua relação com o Direito
Gerivaldo Alves Neiva*
Na tradição machista brasileira, também no interior da Bahia, não tanto como há alguns anos, ainda é comum se ouvir dizer que o marido deu uma “surra” na mulher. Quando criança, ouvi muitos relatos sobre casos dessa natureza e não me recordo muito bem da reação das pessoas. O certo é que não eram reações extremadas. Quase normais. Sem muita indignação ou revolta. Algo como: é assim mesmo! Nem mesmo das mulheres, pelo que me vem à mente, a reação era como deveria ser, segundo meu juízo atual, esteja certo ou errado. Naquele tempo, tudo era absurdamente natural. Talvez um pouco de solidariedade no machucado, e só.
Da parte dos homens, nem dó e nem compaixão. Apenas homenagens ao igual. Símbolo de virilidade e respeito. Poucos, muito poucos, pelo que me vem à mente, repudiavam a atitude. O silêncio público de todos os homens, aprovando o comportamento do outro, no entanto, era estrondoso. Não sei a razão. Talvez por não querer meter a mão em briga de marido e mulher. Talvez solidariedade de gênero. Talvez brutalidade igual. Tudo absurdamente natural. É assim mesmo!
Certa vez, um homem deu uma surra em uma mulher e o caso, estranhamente, virou chacota em uma cidade qualquer, como tantas outras. Todos riram e se divertiram. Homens, mulheres e adolescentes. Eu também ri, não nego. Depois, tempos depois, deixei de rir daquele caso e ele, talvez por vingança, não me fugiu mais da memória. Primeiro, porque o caso é violento e as pessoas se divertiram com ele e, segundo, porque às vezes misturo este caso com o Direito.
Na verdade, não é a surra, por ela mesmo, que se mistura com o Direito. Um homem espancando uma mulher, definitivamente, não combina com o Direito. O que me intriga ainda hoje é pensar no motivo que levou o homem a surrar a própria mulher. Não no motivo que foi dito. Mais do que isso, no motivo que não foi dito. E é este não dito, o que não tem domínio e nem nunca terá, que me faz relacionar o Direito à surra que o homem deu na mulher. Daí, então, quando penso no Direito normatizado e proibitivo de quase tudo, a face horrorizada do homem movido pelo ciúme e inveja de ver uma mulher feliz e na possibilidade de sua mulher ser cumplice da felicidade de outra mulher, se mistura com meus códigos, leis e livros jurídicos em minha estante.
Dois rapazes e duas moças. Amigos de infância. Na mesma festa da padroeira, o primeiro beijo e início do namoro. A data do noivado foi combinada para o mesmo dia. Casamento também. Promessas de que um batizaria o filho do outro. Missa juntos aos domingos. Madrugadas de “carteado” inocente. Churrasco na casa de um e depois na casa do outro. Homens no futebol, mulheres na cozinha. Mulheres na novela, homens na sala. Tudo absurdamente natural e bom até aquela noite.
Um desencontro, uma dor de cabeça, uma indisposição. Uma rotina quebrada. Naquele domingo, apenas um casal repete a missa e ninguém ousou ocupar o espaço vazio no banco da Igreja. Não estavam lá em carne e osso, mas firmes e concretos na imaginação e desejo de todos. Para os outros, eles estavam ali. Na consternação depois da comunhão, em silencio, os pensamentos se entrelaçavam: onde estarão, o que fazem, o que houve, ajudai Senhor...
Ela viu primeiro e torceu para que ele também não visse. Postou-se de lado, tomou-lhe a frente, atrasou o passo e de nada adiantou. Ele também viu, no retorno para casa, a outra mulher, a mulher do amigo deles, com outro homem que não era o dela, abraçados, beijados e apaixonados. Os dois viram e, apesar disso, não se olharam. Apenas viram e cada um sabia o que tinha visto. Novamente os pensamentos entrelaçados. O que ele viu? O que ela viu? Ele apertou a mão dela e nada disse. Ela sentiu-se amparada, apesar do coração apertado, e também nada disse. Seguiram, apenas.
Ao primeiro empurrão, a surpresa. Aos murros e chutes que se seguiram, a dor e as lágrimas:
- Por quê? O que te fiz, homem?
Mais murros e chutes, sem palavras. A expressão de ódio, transtornado, embrutecido repentinamente. As portas fechadas e os vizinhos dormindo. Bastou entrar em casa e aquele não era mais seu homem. Ou agora era o que realmente sempre foi. O que era verdadeiro e o que tinha sido máscara? A única certeza, agora, é que o homem, fosse quem fosse, era real e batia com força e sem parar. Como não chorar de dor? Dor no corpo e na alma. Impossível reagir ou revidar. Dói tudo. É assim mesmo. O que dizer amanhã? Perguntas virão. Mesmo que não verbalizadas, estarão na boca de todos. Perguntas como vômito. Se ao menos soubesse a razão...
Na manhã seguinte – melhor tivesse morrido –, olhos de quem não dormiu e também de quem apanhou muito. Marcas por todo o corpo, por dentro e por fora. Mesmo assim, café posto, voz fina e quase um sussurro: - por quê? A resposta sabida ou imaginada:
- Para que jamais faças igual! Que te sirvas de lição! Para que jamais ouse! Para que sempre te lembres das dores em teu corpo. Para que jamais ouses pensar. Para que esqueças o que viu. Para que a cena se apague de tua mente.
Uma surra preventiva. A turba de homens comemorou. Ele é o melhor de nós. Corta o mal antes mesmo da raiz. Não permite, aliás, que a semente germine. Outras mulheres também riram. Todos os homens riram. Namorados e namoradas também riram. Noivos. Toda a cidade. Isto sim! Pronto, esta jamais ousará. Lembrará para sempre. Jamais abandonará seu posto de mulher fiel, obediente e honesta. Apanhou antes mesmo de errar! Que sirva de exemplo para todas!
No corpo, marcas e dores. Na alma, nada. Nem tristeza, nem alegria, nem saudade, nenhum sentimento desses que só se sente. Apenas silêncio e as dores sentidas e não sentidas no corpo. Sonhos tolhidos antes mesmos de serem sonhados. A felicidade entristecida antes de qualquer riso. Sabores, odores e tatos partidos antes de sentidos. A vida morta antes de vivida. Olhares cegados antes de correspondidos. Resta a vida nua e sem vida. Resta esta vida para ser vivida assim mesmo. É assim mesmo!
Na mente do homem, certamente, uma grande confusão. Minha mulher é minha. Meu amor é maior. Nada pode ser maior do que ele. Não posso permitir felicidade alheia maior do que a minha. Só a mim pode fazer feliz minha mulher. Sim. Importa o que dizem e o que pensam os outros. Não. Nada mais me importa. Isto tudo é insuportável. É insuportável ao homem a mistura do dito e o não dito. O pensado e o não pensado. O querido e o não querido. Bateu em quem, finalmente? Na mulher, na raiva, no ciúme, na inveja, em si mesmo? Perguntas difíceis e respostas mais difíceis ainda.
Agora lembra, também em busca de razões, como flashes rápidos, a cada murro e a cada chute, as imagens se misturando, ora reais, ora abstratas, em sua mente. Como se em transe, vê o homem que batia trocando de lugar e de papel com o homem que beijava e gozava na outra mulher; o homem que batia trocando de lugar e de papel com a mulher que amava e beijava o outro homem; a mulher que apanhava trocando de lugar e de papel com a outra mulher que amava e gozava com outro homem; a mulher que apanhava representando todas as mulheres do mundo amando e gozando com todos os homens do mundo. Ora, quem era, finalmente, o homem que batia?
São passados muitos anos e continuo pensando sobre este caso. Penso no fato da surra, é claro. Penso muito também, talvez até mais, nas razões da surra e em todos os conflitos daí decorrentes. Por que razão um homem surra uma mulher que diz ser sua? Por que antecipa o irreal, a possibilidade sequer cogitada, o devir incerto, a ameaça do nada e, levado pelo ódio – que pensa ser amor – surra a mulher que diz ser sua? Por que se define o ainda não acontecido como crime e por que se deve punir o não acontecido que alguém define como crime? Se o não acontecido ainda não aconteceu, como interpretá-lo como crime? Por que punir a possibilidade do prazer? O que fazer, então, com os desejos e prazeres contidos, sob ameaça de surra? Por que se deve apanhar preventivamente? Por fim, em que pensavam e em que não pensavam, o homem que batia e a mulher que apanhava, no momento da surra? São essas inquietações angustiantes que me fazem lembrar do Direito.
Sobre isto, preciso pensar mais para continuar escrevendo. Isto vai ser outro dia. Preciso relacionar os personagens dessa história com nós mesmos, com os outros, com a liberdade, nossos desejos, medos, a repressão, a lei, o Direito e a Justiça. O desafio é imenso: como afastar o Direito da força e do castigo e aproximá-lo da leveza e do amor pelo outro? 
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), 
uma noite fria e chuvosa, junho de 2011.
Retirado do blog do Dr. Gerivaldo Neiva: 



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